terça-feira, 19 de maio de 2015

Emparedado

Poucos são os anos
Da tua legislativa liberdade
Longos são os anos
Do teu chorar de Igualdade

Hoje buscamos cantares distintos
Que Aqui e Acolá,
No pouco tempo que dá
O dia , e seus ritmos,
Uma vaga noção
De quem um vez lutou
Nas correntes...

E o que cantou
Nos cantos do nosso coração
Deixou sementes!

Hoje sem tempo
Busco ainda fragmento
Do teu passado longínquo
E me encontro com um emparedado
Que mesmo a alma
Sem ter aonde ir,
Não se manteve Calado
Pois a alma não vai
Ela se espalha
E em mim se espalhou

Para que mesmo em fragmento
Possa trazer de volta
A sua prosa
Sobre artista negro e inspirado
Porém, emparedado,
Pelas amarras dos preconceitos...
Os sonhos, poeta,
Estes, não ficam presos...


Emparedado*

 (...) Eu ficara a contemplar, como que sonambulizado, como o espírito indeciso e febricitante dos que esperam, a avalanche de impressões e de sentimentos que se acumulavam em mim à proporção que a noite chegava com o séquito radiante e real das fabulosas Estrelas. (...)
(...) Ah! aquela hora era bem a hora infinita da Esperança!
De que subterrâneos viera eu já, de que torvos caminhos, trôpego de cansaço, as pernas bambaleantes, com a fadiga de um século, recalcando nos tremendos e majestosos Infernos do Orgulho o coração lacerado, ouvindo sempre por toda a parte exclamarem as vãs e vagas bocas: Esperar! Esperar! Esperar! (...)
(...) Por isso é que essa hora sugestiva era para mim então a hora da Esperança, que evocava tudo quanto eu sonhara e se desfizera e vagara e mergulhara no Vácuo... Tudo quanto eu mais eloquentemente amara com o delírio e a fé suprema de solenes assinalamentos e vitórias.
Mas as grandes ironias trágicas germinadas do Absoluto, conclamadas, em anátemas e deprecações inquisitoriais cruzadas no ar violentamente em línguas de fogo, caíram martirizantes sobre a minha cabeça, implacáveis como a peste.
Então, à beira de caóticos, sinistros despenhadeiros, como outrora o doce e arcangélico Deus Negro, o trismegisto, de cornos agrogalhardos, de fagulhantes, estriadas asas enigmáticas, idealmente meditando a Culpa imeditável; então, perdido, arrebatado dentre essas mágicas e poderosas correntes de elementos antipáticos que a Natureza regulariza, e sob a influência de desconhecidos e venenosos filtros, a minha vida ficou como a longa, muito longa véspera de um dia desejado, anelado, ansiosamente, inquietamente desejado, procurado através do deserto dos tempos, com angústia, com agonia, com esquisita e doentia nevrose, mas que não chega nunca, nunca! (...)
(...) E, abrindo e erguendo em vão os braços desesperados em busca de outros braços que me abrigassem; e, abrindo e erguendo em vão os braços desesperados que já nem mesmo a milenária cruz do Sonhador da Judéia encontravam para repousarem pregados e dilacerados, fui caminhando, caminhando, sempre com um nome estranho convulsamente murmurado nos lábios, um nome augusto que eu encontrara não sei em que Mistério, não sei em que prodígios de Investigação e de Pensamento profundo: — o sagrado nome da Arte, virginal e circundada de loureirais e mirtos e palmas verdes e hosanas, por entre constelações. (...)
(...) Foi bastante pairar mais alto, na obscuridade tranqüila, na consoladora e doce paragem das Idéias, acima das graves letras maiúsculas da Convenção, para alvoroçarem-se os Preceitos, irritarem-se as Regras, as Doutrinas, as Teorias, os Esquemas, os Dogmas, armados e ferozes, de cataduras hostis e severas. (...)
 (...) Os temperamentos que surgissem: — podiam ser simples, mas que essa simplicidade acusasse também complexidade, como as claras Ilíadas que os rios cantam. Mas igualmente podiam ser complexos, trazendo as inéditas manifestações do Indefinido, e intensos, intensos sempre, sintéticos e abstratos, tendo esses inexprimíveis segredos que vagam na luz, no ar, no som, no aroma, na cor e que só a visão delicada de um espírito artístico assinala. (...)
 (...) Assim é que eu sonhara surgirem todas essas aptidões, todas essas feições singulares, dolorosas, irrompendo de um alto princípio fundamental distinto em certos traços breves, mas igual, uno, perfeito e harmonioso nas grandes linhas gerais. (...)
(...) Assim é que eu via a Arte, abrangendo todas as faculdades, absorvendo todos os sentidos, vencendo-os, subjugando-os amplamente. (...)
(...) Assim é que eu a compreendia em toda a intimidade do meu ser, que eu a sentia em toda a minha emoção, em toda a genuína expressão do meu Entendimento — e não uma espécie de iguaria agradável, saborosa, que se devesse dar ao público em doses e no grau e qualidade que ele exigisse, fosse esse público simplesmente um símbolo, um bonzo antigo, taciturno e cor de oca, uma expressão serôdia, o público A+B, cujo consenso a Convenção em letras maiúsculas decretara. (...)
(...) No entanto, para que a Arte se revelasse própria, era essencial que o temperamento se desprendesse de tudo, abrisse vôos, não ficasse nem continuativo nem restrito, dentro de vários moldes consagrados que tomaram já a significação representativa de clichês oficiais e antiquados. (...)
(...) Muitos diziam-se rebelados, intransigentes — mas eu via claro as ficelles dessa rebeldia e dessa intransigência. Rebelados, porque tiveram fome uma hora apenas, as botas rotas um dia. Intransigentes, por despeito, porque não conseguiam galgar as fúteis, para eles gloriosas, posições que os outros galgavam. (...)
(...) Era uma politicazinha engenhosa de medíocres, de estreitos, de tacanhos, de perfeitos imbecilizados ou cínicos, que faziam da Arte um jogo capcioso, maneiroso, para arranjar relações e prestígio no meio, de jeito a não ofender, a não fazer corar o diletantismo das suas idéias. Rebeldias intransigências em casa, sob o teto protetor, assim uma espécie de ateísmo acadêmico, muito demolidor e feroz, com ladainhas e amuletos em certa hora para livrar da trovoada e dos celestes castigos imponderáveis!(...)
O que eu quero, o que eu aspiro, tudo por quanto anseio, obedecendo ao sistema arterial das minhas Intuições, é a Amplidão livre e luminosa, todo o Infinito, para cantar o meu Sonho, para sonhar, para sentir, para sofrer, para vagar, para dormir, para morrer, agitando ao alto a cabeça anatematizada, como Otelo nos delírios sangrentos do Ciúme... (...)
(...) Certos espíritos d’Arte assinalaram-se no tempo veiculado pela hegemonia das raças, pela preponderância das civilizações, tendo, porém, em toda a parte, um valor que era universalmente conhecido e celebrizado, porque, para chegar a esse grau de notoriedade, penetrou primeiro nos domínios do oficialismo e da cotterie. (...)
 (...) Ah! benditos os Reveladores da Dor infinita! Ah! soberanos e invulneráveis aqueles que, na Arte, nesse extremo requinte de volúpia, sabem transcendentalizar a Dor, tirar da Dor a grande Significação eloqüente e não amesquinhá-la e desvirginá-la!
A verdadeira, a suprema força d’Arte está em caminhar firme, resoluto, inabalável, sereno através de toda a perturbação e confusão ambiente, isolado no mundo mental criado, assinalando com intensidade e eloqüência o mistério, a predestinação do temperamento.
É preciso fechar com indiferença os ouvidos aos rumores confusos e atropelantes e engolfar a alma, com ardente paixão e fé concentrada, em tudo o que se sente e pensa com sinceridade, por mais violenta, obscura ou escandalosa que essa sinceridade à primeira vista pareça, por mais longe das normas preestabelecidas que a julguem, — para então assim mais elevadamente estrelar os Infinitos da grande Arte, da grande Arte que é só, solitária, desacompanhada das turbas que chasqueiam, da matéria humana doente que convulsiona dentro das estreitezas asfixiantes do seu torvo caracol. (...)
(...) O Artista é que fica muitas vezes sob o signo fatal ou sob a auréola funesta do ódio, quando no entanto o seu coração vem transbordando de Piedade, vem soluçando de ternura, de compaixão, de misericórdia, quando ele só parece mau porque tem cóleras soberbas, tremendas indignações, ironias divinas que causam escândalos ferozes, que passam por blasfêmias negras, contra a Infâmia oficial do Mundo, contra o vício hipócrita, perverso, contra o postiço sentimento universal mascarado de Liberdade e de Justiça. (...)
(...) Deus meu! Por uma questão banal da química biológica do pigmento ficam alguns mais rebeldes e curiosos fósseis preocupados, a ruminar primitivas erudições, perdidos e atropelados pelas longas galerias submarinas de uma sabedoria infinita, esmagadora, irrevogável!
Mas, que importa tudo isso?! Qual é a cor da minha forma, do meu sentir? Qual é a cor da tempestade de dilacerações que me abala? Qual a dos meus sonhos e gritos? Qual a dos meus desejos e febre? (...)
Sim! Tu é que não podes entender-me, não podes irradiar, convulsionar-te nestes efeitos com os arcaísmos duros da tua compreensão, com a carcaça paleontológica do Bom Senso.
(...) Ah! Destino grave, de certo modo funesto, dos que vieram ao mundo para, com as correntes secretas dos seus pensamentos e sentimentos, provocar convulsões subterrâneas, levantar ventos opostos de opiniões, mistificar a insipiência dos adolescentes intelectuais, a ingenuidade de certas cabeças, o bom senso dos cretinos, deixar a oscilação da fé, sobre a missão que trazem, no espírito fraco, sem consistência de crítica própria, sem impulsão original para afirmar os Obscuros que não contemporizam, os Negados que não reconhecem a Sanção oficial, que repelem toda a sorte de conchavos, de compadrismos interesseiros, de aplausos forjicados, por limpidez e decência e não por frivolidades de orgulhos humanos ou de despeitos tristes. (...)
(...) O que em nós outros Errantes do Sentimento flameja, arde e palpita, é esta ânsia infinita, esta sede santa e inquieta, que não cessa, de encontrarmos um dia uma alma que nos veja com simplicidade e clareza, que nos compreenda, que nos ame, que nos sinta.
É esta bendita loucura de encontrar essa alma para desabafar ao largo da Vida com ela, para respirar livre e fortemente, de pulmões satisfeitos e límpidos, toda a onda viva de vibrações e de chamas do Sentimento que contivemos por tanto e tão longo tempo guardada na nossa alma, sem acharmos uma outra alma irmã à qual pudéssemos comunicar absolutamente tudo.
E quando a flor dessa alma se abre encantadora para nós, quando ela se nos revela com todos os seus sedutores e recônditos aromas, quando afinal a descobrimos um dia, não sentimos mais o peito opresso, esmagado: — uma nova torrente espiritual deriva do nosso ser e ficamos então desafogados, coração e cérebro inundados da graça de um divino amor, bem pagos de tudo, suficientemente recompensados de todo o transcendente Sacrifício que a Natureza heroicamente impôs aos nossos ombros mortais, para ver se conseguimos aqui embaixo na Terra encher, cobrir este abismo do Tédio com abismos de Luz!
(...) Eu não pertenço à velha árvore genealógica das intelectualidades medidas, dos produtos anêmicos dos meios lutulentos, espécies exóticas de altas e curiosas girafas verdes e spleenéticas de algum maravilhoso e babilônico jardim de lendas...
Num impulso sonâmbulo para fora do círculo sistemático das Fórmulas preestabelecidas, deixei-me pairar, em espiritual essência, em brilhos intangíveis, através dos nevados, gelados e peregrinos caminhos da Via-Láctea...
E é por isso que eu ouço, no adormecimento de certas horas, nas moles quebreiras de vagos torpores enervantes, na bruma crepuscular de certas melancolias, na contemplatividade mental de certos poentes agonizantes, uma voz ignota, que parece vir do fundo da Imaginação ou do fundo mucilaginoso do Mar ou dos mistérios da Noite — talvez acordes da grande Lira noturna do Inferno e das harpas remotas de velhos céus esquecidos, murmurar-me:
— "Tu és dos de Cam, maldito, réprobo, anatematizado! Falas em abstrações, em Formas, em Espiritualidades, em Requintes, em Sonhos! Como se tu fosses das raças de ouro e da aurora, se viesses dos arianos, depurado por todas as civilizações, célula por célula, tecido por tecido, cristalizado o teu ser num verdadeiro cadinho de idéias, de sentimentos — direito, perfeito, das perfeições oficiais dos meios convencionalmente ilustres! Como se viesses do Oriente, rei!, em galeras, dentre opulências, ou tivesses a aventura magna de ficar perdido em Tebas, desoladamente cismando através de ruínas; ou a iriada, peregrina e fidalga fantasia dos Medievos, ou a lenda colorida e bizarra por haveres adormecido e sonhado, sob o ritmo claro dos astros, junto às priscas margens venerandas do Mar Vermelho!
Artista! Pode lá isso ser se tu és d’África, tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto, tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das Civilizações despóticas, torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da Angústia! A África arrebatada nos ciclones torvelinhantes das Impiedades supremas, das Blasfêmias absolutas, gemendo, rugindo, bramando no caos feroz, hórrido, das profundas selvas brutas, a sua formidável Dilaceração humana! A África laocoôntica, alma de trevas e de chamas, fecundada no Sol e na Noite, errantemente tempestuosa como a alma espiritualizada e tantálica da Rússia, gerada no Degredo e na Neve — pólo branco e pólo negro da Dor!
Artista?! Loucura! Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longínqua região desolada, lá do fundo exótico dessa África sugestiva, gemente, Criação dolorosa e sanguinolenta de Satãs rebelados, dessa flagelada África, grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa de gemidos, tetricamente fulminada pelo banzo mortal; dessa África dos Suplícios, sobre cuja cabeça nirvanizada pelo desprezo do mundo Deus arrojou toda a peste letal e tenebrosa das maldições eternas!
Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da vasta edificação do Mundo, porque atrás de ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram acumulando, acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora o verdadeiro emparedado de uma raça.
Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto! Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo — horrível! — parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror absoluto...
E, mais pedras, mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas, mais pedras, mais pedras... Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes Civilizações e Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E as estranhas paredes hão de subir, — longas, negras, terríficas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até às Estrelas, deixando-te para sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho...


*Fragmento da prosa poética o emparedado de Cruz e Souza. 

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