Poucos são os anos
Da tua legislativa liberdade
Longos são os anos
Do teu chorar de Igualdade
Hoje buscamos cantares distintos
Que Aqui e Acolá,
No pouco tempo que dá
O dia , e seus ritmos,
Uma vaga noção
De quem um vez lutou
Nas correntes...
E o que cantou
Nos cantos do nosso coração
Deixou sementes!
Hoje sem tempo
Busco ainda fragmento
Do teu passado longínquo
E me encontro com um emparedado
Que mesmo a alma
Sem ter aonde ir,
Não se manteve Calado
Pois a alma não vai
Ela se espalha
E em mim se espalhou
Para que mesmo em fragmento
Possa trazer de volta
A sua prosa
Sobre artista negro e inspirado
Porém, emparedado,
Pelas amarras dos preconceitos...
Os sonhos, poeta,
Estes, não ficam presos...
(...) Eu ficara a contemplar, como que
sonambulizado, como o espírito indeciso e febricitante dos que esperam, a
avalanche de impressões e de sentimentos que se acumulavam em mim à proporção
que a noite chegava com o séquito radiante
e real das fabulosas Estrelas. (...)
(...) Ah! aquela
hora era bem a hora infinita da Esperança!
De que
subterrâneos viera eu já, de que torvos caminhos, trôpego de cansaço, as pernas
bambaleantes, com a fadiga de um século, recalcando nos tremendos e majestosos
Infernos do Orgulho o coração lacerado, ouvindo sempre por toda a parte
exclamarem as vãs e vagas bocas: Esperar! Esperar! Esperar! (...)
(...) Por isso é
que essa hora sugestiva era para mim então a hora da Esperança, que evocava
tudo quanto eu sonhara e se desfizera e vagara e mergulhara no Vácuo... Tudo
quanto eu mais eloquentemente amara com o delírio e a fé suprema de solenes
assinalamentos e vitórias.
Mas as grandes
ironias trágicas germinadas do Absoluto, conclamadas, em anátemas e deprecações
inquisitoriais cruzadas no ar violentamente em línguas de fogo, caíram
martirizantes sobre a minha cabeça, implacáveis como a peste.
Então, à beira de
caóticos, sinistros despenhadeiros, como outrora o doce e arcangélico Deus
Negro, o trismegisto, de cornos agrogalhardos, de fagulhantes, estriadas
asas enigmáticas, idealmente meditando a Culpa imeditável; então, perdido,
arrebatado dentre essas mágicas e poderosas correntes de elementos antipáticos
que a Natureza regulariza, e sob a influência de desconhecidos e venenosos
filtros, a minha vida ficou como a longa, muito longa véspera de um dia
desejado, anelado, ansiosamente, inquietamente desejado, procurado através do
deserto dos tempos, com angústia, com agonia, com esquisita e doentia nevrose,
mas que não chega nunca, nunca! (...)
(...) E, abrindo e
erguendo em vão os braços desesperados em busca de outros braços que me
abrigassem; e, abrindo e erguendo em vão os braços desesperados que já nem
mesmo a milenária cruz do Sonhador da Judéia encontravam para repousarem
pregados e dilacerados, fui caminhando, caminhando, sempre com um nome estranho
convulsamente murmurado nos lábios, um nome augusto que eu encontrara não sei
em que Mistério, não sei em que prodígios de Investigação e de Pensamento
profundo: — o sagrado nome da Arte, virginal e circundada de loureirais e
mirtos e palmas verdes e hosanas, por entre constelações. (...)
(...) Foi bastante
pairar mais alto, na obscuridade tranqüila, na consoladora e doce paragem das
Idéias, acima das graves letras maiúsculas da Convenção, para alvoroçarem-se os
Preceitos, irritarem-se as Regras, as Doutrinas, as Teorias, os Esquemas, os
Dogmas, armados e ferozes, de cataduras hostis e severas. (...)
(...) Os temperamentos que surgissem: — podiam
ser simples, mas que essa simplicidade acusasse também complexidade, como as
claras Ilíadas que os rios cantam. Mas igualmente podiam ser complexos,
trazendo as inéditas manifestações do Indefinido, e intensos, intensos sempre, sintéticos
e abstratos, tendo esses inexprimíveis segredos que vagam na luz, no ar, no
som, no aroma, na cor e que só a visão delicada de um espírito artístico
assinala. (...)
(...) Assim é que eu sonhara surgirem todas
essas aptidões, todas essas feições singulares, dolorosas, irrompendo de um
alto princípio fundamental distinto em certos traços breves, mas igual, uno,
perfeito e harmonioso nas grandes linhas gerais. (...)
(...) Assim é que
eu via a Arte, abrangendo todas as faculdades, absorvendo todos os sentidos,
vencendo-os, subjugando-os amplamente. (...)
(...) Assim é que
eu a compreendia em toda a intimidade do meu ser, que eu a sentia em toda a
minha emoção, em toda a genuína expressão do meu Entendimento — e não uma
espécie de iguaria agradável, saborosa, que se devesse dar ao público em doses
e no grau e qualidade que ele exigisse, fosse esse público simplesmente um
símbolo, um bonzo antigo, taciturno e cor de oca, uma expressão serôdia, o público A+B, cujo consenso a
Convenção em letras maiúsculas decretara. (...)
(...) No entanto,
para que a Arte se revelasse própria, era essencial que o temperamento se
desprendesse de tudo, abrisse vôos, não ficasse nem continuativo nem restrito,
dentro de vários moldes consagrados que tomaram já a significação
representativa de clichês oficiais e antiquados. (...)
(...) Muitos diziam-se
rebelados, intransigentes — mas eu via claro as ficelles dessa rebeldia e
dessa intransigência. Rebelados, porque tiveram fome uma hora apenas, as botas
rotas um dia. Intransigentes, por despeito, porque não conseguiam galgar as
fúteis, para eles gloriosas, posições que os outros galgavam. (...)
(...) Era uma
politicazinha engenhosa de medíocres, de estreitos, de tacanhos, de perfeitos
imbecilizados ou cínicos, que faziam da Arte um jogo capcioso, maneiroso, para
arranjar relações e prestígio no meio, de jeito a não ofender, a não fazer
corar o diletantismo das suas idéias. Rebeldias intransigências em casa, sob o
teto protetor, assim uma espécie de ateísmo acadêmico, muito demolidor e feroz,
com ladainhas e amuletos em certa hora para livrar da trovoada e dos celestes
castigos imponderáveis!(...)
O que eu quero, o
que eu aspiro, tudo por quanto anseio, obedecendo ao sistema arterial das
minhas Intuições, é a Amplidão livre e luminosa, todo o Infinito, para cantar o
meu Sonho, para sonhar, para sentir, para sofrer, para vagar, para dormir, para
morrer, agitando ao alto a cabeça anatematizada, como Otelo nos delírios
sangrentos do Ciúme... (...)
(...) Certos
espíritos d’Arte assinalaram-se no tempo veiculado pela hegemonia das raças,
pela preponderância das civilizações, tendo, porém, em toda a parte, um valor
que era universalmente conhecido e celebrizado, porque, para chegar a esse grau
de notoriedade, penetrou primeiro nos domínios do oficialismo e da cotterie.
(...)
(...) Ah! benditos os Reveladores da Dor
infinita! Ah! soberanos e invulneráveis aqueles que, na Arte, nesse extremo
requinte de volúpia, sabem transcendentalizar a Dor, tirar da Dor a grande
Significação eloqüente e não amesquinhá-la e desvirginá-la!
A verdadeira, a
suprema força d’Arte está em caminhar firme, resoluto, inabalável, sereno
através de toda a perturbação e confusão ambiente, isolado no mundo mental
criado, assinalando com intensidade e eloqüência o mistério, a predestinação do
temperamento.
É preciso fechar
com indiferença os ouvidos aos rumores confusos e atropelantes e engolfar a
alma, com ardente paixão e fé concentrada, em tudo o que se sente e pensa com
sinceridade, por mais violenta, obscura ou escandalosa que essa sinceridade à
primeira vista pareça, por mais longe das normas preestabelecidas que a
julguem, — para então assim mais elevadamente estrelar os Infinitos da grande
Arte, da grande Arte que é só, solitária, desacompanhada das turbas que
chasqueiam, da matéria humana doente que convulsiona dentro das estreitezas asfixiantes
do seu torvo caracol. (...)
(...) O Artista é
que fica muitas vezes sob o signo fatal ou sob a auréola funesta do ódio,
quando no entanto o seu coração vem transbordando de Piedade, vem soluçando de
ternura, de compaixão, de misericórdia, quando ele só parece mau porque tem
cóleras soberbas, tremendas indignações, ironias divinas que causam escândalos
ferozes, que passam por blasfêmias negras, contra a Infâmia oficial do Mundo,
contra o vício hipócrita, perverso, contra o postiço sentimento universal
mascarado de Liberdade e de Justiça. (...)
(...) Deus meu!
Por uma questão banal da química biológica do pigmento ficam alguns mais
rebeldes e curiosos fósseis preocupados, a ruminar primitivas erudições,
perdidos e atropelados pelas longas galerias submarinas de uma sabedoria infinita,
esmagadora, irrevogável!
Mas, que importa
tudo isso?! Qual é a cor da minha forma, do meu sentir? Qual é a cor da
tempestade de dilacerações que me abala? Qual a dos meus sonhos e gritos? Qual
a dos meus desejos e febre? (...)
Sim! Tu é que não
podes entender-me, não podes irradiar, convulsionar-te nestes efeitos com os
arcaísmos duros da tua compreensão, com a carcaça paleontológica do Bom Senso.
(...) Ah! Destino
grave, de certo modo funesto, dos que vieram ao mundo para, com as correntes
secretas dos seus pensamentos e sentimentos, provocar convulsões subterrâneas,
levantar ventos opostos de opiniões, mistificar a insipiência dos adolescentes
intelectuais, a ingenuidade de certas cabeças, o bom senso dos cretinos, deixar
a oscilação da fé, sobre a missão que trazem, no espírito fraco, sem
consistência de crítica própria, sem impulsão original para afirmar os Obscuros
que não contemporizam, os Negados que não reconhecem a Sanção oficial, que
repelem toda a sorte de conchavos, de compadrismos interesseiros, de aplausos
forjicados, por limpidez e decência e não por frivolidades de orgulhos humanos
ou de despeitos tristes. (...)
(...) O que em nós
outros Errantes do Sentimento flameja, arde e palpita, é esta ânsia infinita,
esta sede santa e inquieta, que não cessa, de encontrarmos um dia uma alma que
nos veja com simplicidade e clareza, que nos compreenda, que nos ame, que nos
sinta.
É esta bendita
loucura de encontrar essa alma para desabafar ao largo da Vida com ela, para
respirar livre e fortemente, de pulmões satisfeitos e límpidos, toda a onda
viva de vibrações e de chamas do Sentimento que contivemos por tanto e tão
longo tempo guardada na nossa alma, sem acharmos uma outra alma irmã à qual
pudéssemos comunicar absolutamente tudo.
E quando a flor
dessa alma se abre encantadora para nós, quando ela se nos revela com todos os
seus sedutores e recônditos aromas, quando afinal a descobrimos um dia, não
sentimos mais o peito opresso, esmagado: — uma nova torrente espiritual deriva
do nosso ser e ficamos então desafogados, coração e cérebro inundados da graça
de um divino amor, bem pagos de tudo, suficientemente recompensados de todo o
transcendente Sacrifício que a Natureza heroicamente impôs aos nossos ombros
mortais, para ver se conseguimos aqui embaixo na Terra encher, cobrir este
abismo do Tédio com abismos de Luz!
(...) Eu não
pertenço à velha árvore genealógica das intelectualidades medidas, dos produtos
anêmicos dos meios lutulentos, espécies exóticas de altas e curiosas girafas
verdes e spleenéticas de algum maravilhoso e babilônico jardim de lendas...
Num impulso
sonâmbulo para fora do círculo sistemático das Fórmulas preestabelecidas,
deixei-me pairar, em espiritual essência, em brilhos intangíveis, através dos
nevados, gelados e peregrinos caminhos da Via-Láctea...
E é por isso que
eu ouço, no adormecimento de certas horas, nas moles quebreiras de vagos
torpores enervantes, na bruma crepuscular de certas melancolias, na contemplatividade
mental de certos poentes agonizantes, uma voz ignota, que parece vir do fundo
da Imaginação ou do fundo mucilaginoso do Mar ou dos mistérios da Noite —
talvez acordes da grande Lira noturna do Inferno e das harpas remotas de velhos
céus esquecidos, murmurar-me:
— "Tu és dos
de Cam, maldito, réprobo,
anatematizado! Falas em abstrações, em Formas, em Espiritualidades, em
Requintes, em Sonhos! Como se tu fosses das raças de ouro e da aurora, se
viesses dos arianos, depurado por todas as civilizações, célula por célula,
tecido por tecido, cristalizado o teu ser num verdadeiro cadinho de idéias, de
sentimentos — direito, perfeito, das perfeições oficiais dos meios
convencionalmente ilustres! Como se viesses do Oriente, rei!, em galeras,
dentre opulências, ou tivesses a aventura magna de ficar perdido em Tebas,
desoladamente cismando através de ruínas; ou a iriada, peregrina e fidalga
fantasia dos Medievos, ou a lenda colorida e bizarra por haveres adormecido e
sonhado, sob o ritmo claro dos astros, junto às priscas margens venerandas do
Mar Vermelho!
Artista! Pode lá
isso ser se tu és d’África, tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo
deserto, tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das
Civilizações despóticas, torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da
Angústia! A África arrebatada nos ciclones torvelinhantes das Impiedades
supremas, das Blasfêmias absolutas, gemendo, rugindo, bramando no caos feroz,
hórrido, das profundas selvas brutas, a sua formidável Dilaceração humana! A
África laocoôntica, alma de trevas e
de chamas, fecundada no Sol e na Noite, errantemente tempestuosa como a alma
espiritualizada e tantálica da
Rússia, gerada no Degredo e na Neve — pólo branco e pólo negro da Dor!
Artista?! Loucura!
Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longínqua região desolada, lá do
fundo exótico dessa África sugestiva, gemente, Criação dolorosa e sanguinolenta
de Satãs rebelados, dessa flagelada África, grotesca e triste, melancólica, gênese
assombrosa de gemidos, tetricamente fulminada pelo banzo mortal; dessa África
dos Suplícios, sobre cuja cabeça nirvanizada pelo desprezo do mundo Deus
arrojou toda a peste letal e tenebrosa das maldições eternas!
Não! Não! Não! Não
transporás os pórticos milenários da vasta edificação do Mundo, porque atrás de
ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram acumulando, acumulando pedra
sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora o verdadeiro emparedado
de uma raça.
Se caminhares para
a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede horrendamente
incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra
parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará
profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita
de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao
alto! Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede,
fechando tudo, fechando tudo — horrível! — parede de Imbecilidade e Ignorância,
te deixará num frio espasmo de terror absoluto...
E, mais pedras,
mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas, mais pedras, mais pedras...
Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes Civilizações e Sociedades... Mais
pedras, mais pedras! E as estranhas paredes hão de subir, — longas, negras,
terríficas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até às Estrelas,
deixando-te para sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho...
*Fragmento da prosa poética o emparedado de Cruz e
Souza.